Começar a atuar na Psicologia clínica é como abrir as portas de um novo mundo: são vozes diversas, histórias que nos atravessam e subjetividades que nos convocam à escuta.
Mas, ao mesmo tempo em que construímos esse espaço de escuta, precisamos nos perguntar: minha prática acolhe todas as identidades com a dignidade que elas merecem?
Hoje, mais do que nunca, a atuação de psicólogas — especialmente aquelas em início de carreira — exige um olhar apurado sobre os compromissos éticos com a diversidade, sobretudo em relação às pessoas trans, travestis e não binárias.
Não se trata apenas de uma demanda contemporânea, mas de um chamado profundo ao coração da nossa profissão: a defesa inegociável dos Direitos Humanos.
A Psicologia não é neutra. Cada escuta que se faz omissa diante da transfobia ou cada silêncio que valida uma linguagem excludente reforça a marginalização de corpos que lutam, cotidianamente, pelo direito de existir.
Por isso, este texto é um convite: vamos juntas construir uma prática comprometida com a vida, a dignidade e a inclusão real?
Resolução CFP nº 01/2018: O marco da Psicologia afirmativa no Brasil
Em 2018, o Conselho Federal de Psicologia publicou a Resolução CFP nº 01/2018, estabelecendo com clareza que a atuação da Psicologia junto às pessoas trans e travestis deve ser livre de preconceitos, estigmas e patologização.
Segundo o próprio texto da resolução, é vedado à psicóloga ou psicólogo:
- Promover qualquer forma de discriminação com base na identidade de gênero;
- Utilizar técnicas que reforcem estereótipos ou preconceitos de gênero;
- Colaborar com serviços que incentivem terapias de conversão ou readequação da identidade de gênero
Isso significa, na prática, que respeitar a autodeterminação de gênero não é um diferencial — é um dever ético.
Pessoas trans, travestis e não binárias têm o direito de serem reconhecidas tal como são, em sua subjetividade, sem que sejam forçadas a corresponder a um ideal cisgênero ou binário.
A resolução ainda destaca que o preconceito estrutural deve ser enfrentado, inclusive nos discursos públicos e institucionais, sinalizando que a atuação ética também passa pelo modo como nos posicionamos fora do consultório.

Nota Técnica CFP nº 11/2025: Uma atualização essencial para o exercício clínico
Com o avanço das discussões sociais e a urgência de orientações mais detalhadas, o CFP lançou, em 2025, a Nota Técnica nº 11/2025, que atualiza e amplia o compromisso da Psicologia com os direitos das pessoas trans, travestis e não binárias.
Essa nota oferece não apenas orientações éticas, mas também referenciais históricos, legais, técnicos e afetivos para garantir um atendimento qualificado.
Ela é, hoje, material indispensável para qualquer profissional que deseje atuar com responsabilidade social e sensibilidade clínica.
Entre os principais pontos da Nota Técnica, destacam-se:
- O reconhecimento da identidade de gênero como parte da diversidade humana, e não como sintoma ou transtorno;
- O combate ao exorsexismo, forma de opressão contra pessoas que não se identificam com o sistema binário de gênero;
- A defesa da neolinguagem como instrumento de validação e acolhimento;
- A importância da escuta interseccional, que leva em conta aspectos como raça, classe, território e deficiência;
- O acolhimento ético a crianças, adolescentes, pessoas idosas e com deficiência trans e não binárias.
Além disso, o texto reafirma que não há um “modelo ideal” de transição. Cada pessoa terá seu próprio tempo, suas escolhas e sua trajetória, e cabe à Psicologia respeitar e acompanhar esse processo com escuta ativa, empatia e sem imposições.
Dados que sustentam nosso posicionamento: a urgência da inclusão
Para compreender a importância da atuação afirmativa da Psicologia, é preciso olhar para os dados que refletem a realidade brutal vivida por essa população.
Segundo o relatório da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), divulgado em janeiro de 2024:
A expectativa média de vida de pessoas trans no Brasil é de apenas 35 anos, enquanto a média da população geral ultrapassa os 75 anos.
Em 2023, 131 pessoas trans foram assassinadas no país, consolidando o Brasil como líder mundial em homicídios dessa população.
Mais de 60% relataram experiências de discriminação em serviços de saúde, segundo o IBGE (2022).
A evasão escolar entre jovens trans e travestis ultrapassa os 82%, em razão da violência sofrida no ambiente escolar.
Apenas 4% das pessoas trans têm emprego formal, o que reflete o ciclo de exclusão social que começa na infância e se estende pela vida adulta.
Esses números não são estatísticas soltas. Eles devem ecoar em nossos consultórios como lembretes de que cada atendimento é uma oportunidade de romper com um ciclo de apagamento e exclusão.
Para psicólogas recém-formadas: por onde começar?

Se você está se formando agora e quer construir uma atuação ética e acolhedora, aqui vão pontos de partida essenciais:
- Estude profundamente os documentos normativos
Não se limite à leitura superficial. A Nota Técnica CFP nº 11/2025 é extensa, sim, mas cada linha ali carrega um posicionamento político-clínico que vai orientar sua prática com segurança e sensibilidade. Já a Resolução nº 01/2018 é curta e precisa — ela precisa estar decorada em sua atuação clínica. - Revise sua comunicação institucional
Verifique se seu formulário de anamnese pergunta apenas por “sexo” ou se inclui opções para nome social e pronomes. Atualize seus materiais e esteja disposta a aprender com os próprios erros — isso também é ética. - Utilize a linguagem como ferramenta de acolhimento
A neolinguagem não é uma imposição “militante” ou uma moda: ela é uma forma de dizer, com palavras, que o sujeito é bem-vindo com sua identidade. Perguntar, respeitar e adotar os pronomes corretos pode ser a primeira experiência de reconhecimento verdadeiro na vida de alguém. - Pratique a escuta interseccional
Não reduza a identidade de gênero a uma dimensão isolada. Um homem trans negro, periférico, que vive com deficiência, não é apenas “trans”: ele carrega vulnerabilidades múltiplas que devem ser escutadas em conjunto. O mesmo vale para mulheres trans idosas ou adolescentes não bináries em contexto escolar. - Evite imposições cisnormativas
Não presuma desejos de transição física. Não questione a identidade de gênero com perguntas invasivas. Não condicione o atendimento à existência de cirurgias ou uso de hormônios. - Busque supervisão com quem já atua na área
Nem toda escuta é suficiente. Supervisione casos que envolvam identidade de gênero com profissionais que tenham repertório ético e técnico consolidado nesse campo.
Uma escuta que transforma: clínica como território de existência
Imagine quantas pessoas foram expulsas de casa, abandonadas por suas famílias ou ridicularizadas na escola simplesmente por serem quem são.
Agora imagine que, pela primeira vez, elas entrem em um consultório e sejam chamadas pelo nome que escolheram, com os pronomes que respeitam sua identidade, sem olhares enviesados ou questionamentos invasivos.
Isso não é detalhe. É um ato clínico revolucionário.
A escuta, quando feita com ética e compromisso, se torna espaço de reexistência. E é justamente isso que a Nota Técnica CFP nº 11/2025 reforça em cada linha: nosso papel não é validar identidades a partir de critérios biomédicos ou sociais, mas acompanhar trajetórias subjetivas com acolhimento, afeto e técnica.
Como me tornar uma psicóloga mais inclusiva?
Você sente que saiu da graduação com lacunas importantes sobre gênero, diversidade e escuta clínica inclusiva?
Já percebeu que muitos dos manuais e protocolos ignoram o impacto da transfobia, do exorsexismo e da normatividade na saúde mental das pessoas?
Inspirado na Nota Técnica CFP nº 11/2025 e na Resolução CFP nº 01/2018, elaboramos esse passo a passo simples, didático e transformador. Não é sobre “dominar um tema”. É sobre construir um jeito mais justo de escutar e acolher.
Ação Prática | Objetivos |
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Leitura completa da Nota Técnica CFP nº 11/2025 | Compreender os fundamentos éticos e técnicos do atendimento afirmativo |
Escrita reflexiva sobre preconceitos e formação | Identificar lacunas, crenças pessoais e pontos de (des)aprendizado |
Revisão dos formulários clínicos | Tornar o material de atendimento mais acolhedor e livre de cisnormatividade |
Criação de um glossário afetivo | Fixar conceitos essenciais sobre identidade de gênero, diversidade e linguagem ética |
Escrita com linguagem inclusiva | Desenvolver habilidade de comunicação afirmativa e respeitosa |
Simulação de um caso clínico com escuta afirmativa | Aplicar os conhecimentos na prática clínica, observando limites e cuidados éticos |
Compartilhar aprendizados com uma colega | Fortalecer a rede de psicólogas comprometidas com práticas antidiscriminatórias |
Ao final do desafio…
Você não terá apenas lido dois documentos do CFP. Você terá se posicionado, revisto sua prática, atualizado materiais e, principalmente, aberto espaço para que mais pessoas possam se sentir reconhecidas, seguras e acolhidas na sua escuta.
Essa é a Psicologia que transforma. E ela começa no detalhe — no nome, no pronome, na escuta, na intenção.
Conclusão: A ética começa no reconhecimento do outro
A clínica não é um palco neutro. Toda escuta carrega escolhas. Toda técnica carrega ideologia. E toda decisão profissional carrega impacto.
Reconhecer, respeitar e proteger as existências trans, travestis e não binárias não é um favor nem uma tendência da moda: é uma exigência ética fundamentada pela Resolução CFP nº 01/2018 e pela Nota Técnica CFP nº 11/2025, dois documentos que precisam estar lado a lado com seu Código de Ética, na estante e na prática.
Se você quer ser uma profissional que transforma o mundo pela escuta, comece por aqui: reconhecendo a potência de todas as formas de ser, existir e sentir.
A Psicologia que queremos precisa nascer no agora. E ela começa por você.